terça-feira, 16 de setembro de 2008

5 - O presente de Natal



Foto: Xalingo
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A classe média V – O presente de Natal

Por Paulo Heuser


Linoberto recebeu a notícia da chegada do Estranho enquanto tentava desatolar o já crescido terneiro que mugia desesperadamente. Ele já nem considerava mais o Estranho tão antipático. Chegava a ter um pouco de pena dele. Afinal, ele não tivera culpa por aceitar aquele emprego na tal da ONG Vaca Feliz, contratada pelo governo. Com a crise que nunca terminava, do lado de lá do cinamomo, qualquer emprego era emprego.

Encontraram-se no Bar, Armazém e Borracharia 12 Irmãos. O copo da “boa” já esperava Linoberto. Cumprimentaram-se, trocaram amenidades sobre o já crescido terneiro, o estado da estrada e a proximidade do Natal. Linoberto encerrou a fase da firula quando perguntou ao estranho sobre a razão da nova visita.

- Seu Linoberto, venho como representante da ONG Vaca...

- Sei, sei, Vaca Feliz, contratada pelo governo para...O que é, desta vez?

- Bem, Seu Linoberto, desta vez venho falar com o Secretário Municipal da Educação e Cultura, cargo que o senhor também acumula, pelo que me disse o Prefeito.

- Sou todo ouvidos. – disse Linoberto, enquanto o já crescido terneiro mugia.

O Estranho tomou fôlego e continuou:

- Tenho a satisfação de lhe comunicar que o Governo está liberando verba para a introdução do ensino do idioma uzbeque, no Ensino Fundamental!

- Céus, onde se fala isso? – perguntou o intrigado e espantado Linoberto.

- Ora, no Uzbequistão! – o Estranho parecia não entender a ignorância do Secretário da Educação e Cultura do lado de cá do cinamomo.

- Certo, mas por que alguém aqui deveria aprender esse uzbe... Como é mesmo?

- Uzbeque!

- Nós já ensinamos inglês e espanhol aos alunos. Ficaria pesado, mais um idioma.

- Bem, Seu Linoberto, não se trata de uma nova língua. Deverão substituir uma das línguas estrangeiras já administradas. A lei não prevê a inclusão de nova disciplina.

- Já sei, a lei é besta, mas é a lei!

- Exatamente, tirou as palavras da minha boca. – disse o Estranho, enquanto o já crescido terneiro mugia de felicidade, livre do atoleiro.

- Só não entendi o porquê dessa língua em especial. Não podemos optar pelo ensino do idioma francês, ou do alemão?

- Bem, err... É porque os manuais dos kits estão escritos em uzbeque, na verdade...

- Kits? Quais kits?

- Os kits dos jogos para presente de Natal das crianças.

- Continuo a não entender, por que comprariam brinquedos com manuais escritos numa língua dessas?

- Não foram comprados, foram dados em pagamento...

- Pagamento do quê?

- Da dívida externa do Uzbequistão.

- Não sabia que havíamos emprestado alguma coisa para eles.

- Não emprestamos, na verdade. Foi a Bolivária quem emprestou.

- E o que nós tempos a ver com isso?

- Ora, o Uzbequistão pagou em kits a divida externa da Bolivária.

- Continuo não vendo o que nós temos a ver com isso!

- Bem, os bolivarianos nos indenizaram por algumas desapropriações, pagando em kits. Como era pegar ou largar, pegamos. Melhor alguns kits uzbeques na mão do que dólares voando. Como havia uma certa dificuldade para utilizá-los, pelo desconhecimento da língua, elaboramos uma lei para introduzir o ensino do idioma uzbeque.

- Hum, entendi. Para carnearem o porco vocês derrubaram o matadouro.

- (?) – o Estranho pareceu não entender a analogia.

- São muitos kits?

- Não muitos. Não passam de 18 milhões.

- Não podemos recusar os kits e deixar de substituir os idiomas já ministrados?

- Não, besta lex, sed lex. A única condição, prevista em lei, que dispensa as aulas de uzbeque é a de as crianças já dominarem essa língua, a ponto de conseguirem utilizar os kits. Nós escolhemos aleatoriamente duas crianças matriculadas na escola e lhes entregamos um kit. Se conseguirem ler as instruções e utilizá-los, a condição legal está satisfeita.

Quando o Estranho partiu, contrariado, o já crescido terneiro mugiu. Linoberto pagou pirulitos xaropentos, em forma de apitos, daquele tipo que só se via ainda do lado de cá do cinamomo, para as duas crianças que saíram correndo ladeira abaixo, felizes com seus kits.

Linoberto chegou em casa cansado, mas satisfeito. Contou o ocorrido a Maria.

- E aí, Lino, as crianças terão que aprender essa língua estranha?

- Não, Maria. Encontrei um modo de contornar a situação e ainda por cima dar um presente de Natal para as crianças. Pedi para ver um dos tais kits. Quando botei o olho nele, me caiu a solução. Pedi ao padre que mandasse duas crianças da oitava série até o 12 Irmãos.

- E aí, Lino? Elas conseguiram ler as instruções?

- Não foi preciso. O tal kit era um jogo pega-varetas.


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terça-feira, 19 de agosto de 2008

7 - O grande cosilor de hádrons



Foto: CERN
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7 – O Grande Colisor de Hádrons

Por Paulo Heuser


Linoberto jogou-se na cadeira do Armazém, Bar e Borracharia 12 Irmãos, no Lado de Cá do Cinamomo, último bastião da classe média. O sétimo irmão, dos 12, trouxe o copo da “boa”. Enquanto Linoberto tomava o primeiro gole, não pode deixar de ver que o Estranho estava sentado na mesa da direita. Era tudo que ele não queria ver, após um dia na lavoura. Sabia-se lá o que o Governo havia aprontado agora. Coisa boa, não havia de ser. O Estranho era o único estranho que sabia chegar até o Lado de Cá do Cinamomo, município mais isolado do País, desde que as forças progressistas assumiram as estradas. O Estranho chegara lá por engano, pela primeira vez, após ter violado em muitos decigramas a Tolerância Zero com o álcool. Desde aquele famigerado dia, sempre que o Governo desejava impor uma nova lei, enviava o Estranho.
Linoberto pensava no que seria, desta vez. Alguma nova lei besta, com certeza. Seus pensamentos foram interrompidos pela aproximação do Estranho, trazendo sua cadeira e seu copo da “boa”. Após seis visitas, ele já tolerava a pinga com carqueja e losna, que causava arrepios nas narinas dos inexperientes. O Estranho chegou, sorridente:

- Boa tarde, Linoberto! Como tem passado? – havia um estranho brilho de satisfação no olhar dele.

- Estive ótimo, até a sua chegada! – disse o ressabiado Linoberto.

- Quanta desconfiança! – disse o homem, sorrindo marotamente.

- Qual é a nova Besta lex, sed Lex? – Lei é besta, mas é a lei.

- Calma, Linoberto. Desta vez venho como representante do Ministério da Educação e Cultura. Estamos iniciando um programa de difusão da ciência, chamado Ciência Popular. Levaremos os segredos do Universo, antes propriedade das elites, para todo o povo.

- Qual é a bomba, desta vez? – perguntou-lhe Linoberto, enquanto observava, com o canto do olho, um sujeito estranho, parado ao lado da camionete do Governo do Outro Lado do Cinamomo
- a União, os Estados e todos os outros os outros municípios do País. O sujeito mostrava ar bestificado de quem nunca vira uma vaca, que, por sinal, mugia. Ele tentava medi-la, como se fosse a descoberta do século.

- Não é bomba, creia-me, Linoberto. Estamos apenas difundindo conhecimentos científicos para a população menos esclarecida.

- Está nos chamando de burros? – ofendeu-se Linoberto, enquanto a vaca mugia.

- Não, pelo amor de Deus, me referia a quem não tem tanto acesso à informação!

- Tudo bem, mas qual é a idéia?

- Bem, falei com o Sétimo – sétimo dos 12 Irmãos – que está exercendo o mandado de Prefeito, e ele me falou que você está acumulando também a Secretaria da Educação, Cultura e Entretenimento, além das de Obras e Fazenda, do Município do Lado de Cá do Cinamomo. Pois bem, trouxemos o Doutor Bárion Gluon, para realizar uma palestra científica extraordinária, de inclusão científica!

- Do que se trata? Algo sobre a ordenha mecânica? – perguntou-lhe Linoberto.

- Não, nada tão prosaico e inútil, cientificamente. O Dr. Bárion veio dar uma palestra sobre o LHC – Grande Colisor de Hádrons – instalado entre a França e a Suíça, pela Organização Européia de Pesquisa Nuclear.

- Sei, nos ensinará muita coisa útil para o desenvolvimento da agricultura familiar. – ironizou Linoberto.

- Bem, talvez o tema da palestra não seja exatamente o que vocês queriam ouvir, porém é a lei. Votaram a Lei da Inclusão Nuclear. Toda a população do País assistirá às palestras do famoso Dr. Bárion.

- Entendi, Besta Lex, sed Lex! – a lei é besta, mas é a lei.

O Estranho tomou um gole da “boa”, concordando com Linoberto.

Já que era a lei, apesar de besta, Linoberto convocou a população do Lado de Cá do Cinamomo, para assistirem à palestra do renomado Dr. Bárion Gluon. O Padre Antão propagou a boa nova, em tese, durante a missa das seis. O Sétimo organizou as cadeiras, para a platéia, em filas sucessivas. Às sete em ponto, o Dr. Bárion estava postado junto ao balcão do bar, encarando aquela multidão de quinze pessoas – os doze irmãos, Padre Antão, Dona Clotilde e Linoberto. O Dr. Bárion chegou a cogitar o cancelamento da palestra, por falta de quórum, mas o Estranho lembrou-lhe que era a lei.

Dr. Bárion começou a preleção falando do valor do investimento.

- Já foram gastos oito bilhões de Euros!

O Sétimo não resistiu, e fez a primeira pergunta:

- Daria para comprar um trator novo, para a Prefeitura, com esse dinheiro?

- Daria para comprar mais de oito milhões de tratores! – divertiu-se o doutor.

Satisfeito com o silêncio gerado entre aquela multidão, o Dr. Bárion continuou:

O Colisor de Hádrons tem extensão de 27 quilômetros, e está enterrado a cem metros, abaixo do solo! – ele parecia extasiado com as caras boquiabertas, em meio à platéia. O Sétimo moveu-se ruidosamente, sobre a cadeira. E não se conteve:

- Espera aí! Que porcaria é essa de rádron?

- Hádrons, senhor! – o doutor pareceu ofendido – Hádrons, por definição, são partículas que interagem fortemente com outros hádrons!

A esclarecedora explicação fez o queixo do Sétimo cair, mas ele não se deixou vencer tão facilmente:

- E que porcaria de colisor é essa? – ele tomou outro gole da “boa”, de sopetão.

- Colisor, senhor, é um acelerador de partículas que faz hádrons colidirem, em altíssima velocidade, liberando enormes quantidades de energia, gerando, inclusive, eventuais partículas que beiram a singularidade, ou seja, minúsculos buracos negros. Porém, senhor, não há o que temer, em relação a esses buracos negros.

O Sétimo ficou lá, parado, de boca aberta, quase representando uma singularidade bucal. Mas, não se furtou a expressar sua opinião sincera:

- Ora, fossa negra todo mundo tem em casa! Só que a gente não faz propaganda dela, deixa para os tatus-bola.

O Dr. Bárion fez cara de quem não entendeu. Aquela cara urbana de quem não conhece a singularidade sanitária do grotão.

Então, Padre Antão tentou quebrar o gelo, sentindo que a coisa iria enveredar por um caminho não tão científico.

- Doutor, qual é o propósito de tal experimento?

- Excelente pergunta, Padre! O colisor tentará observar os Bósons de Higgs!

Padre Antão tentou parecer esperto.

- Percebo...

- Percebe, nada! – gritou o enfurecido Sétimo – Para que serve essa porcaria, afinal? Fale como gente, homem!

Pela primeira vez, Dr. Bárion pareceu preocupado. O Sétimo ficara realmente perturbado. Era hora de usar a linguagem do povo:

- Bem, é para tentar encontrar a origem da massa...

Ele não conseguiu terminar a frase, interrompido pela gutural gargalhada do Sétimo. Ele sacudia-se na cadeira, dando verdadeiras barrigadas. Lágrimas de riso escorriam pelo rosto. Ele mal conseguiu articular a frase:

- Quiá, quiá, quiá! Gastaram mais de oito milhões de tratores, cavaram 27 quilômetros de fossas, de cem metros de fundura, para descobrirem o que todo mundo aqui sabe.

- Perdão, não entendi! – afirmou o espantado Dr. Bárion.

- Quiá, quiá, quiá! Todo mundo sabe que a massa vem da casa da Dona Tramontini, que mora atrás do cemitério! Ela faz spaghetti e tortelli!

O Dr. Bárion Gluon voltou para o Outro Lado do Cinamomo. Pensava em lecionar ponto-cruz, ponto-cheio e vagonite.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

4 - Cultura



Foto: Brasil.gov.br

A classe média IV – Cultura
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Por Paulo Heuser
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O telefone tocou, no Bar, Armazém e Borracharia 12 Irmãos. Tocou meio fanho, pois as aranhas haviam construído teias ao redor da campainha. O oitavo dos 12 irmãos atendeu, passando ao sétimo, o Prefeito.

- É para você!
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- Quem é?
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- Não sei, não entendi nada...
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- Então, como sabe que é para mim?
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- Por isso mesmo, quando ligam do Governo, nunca se entende.
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- Como você sabe que é do Governo, se não se entende?
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- De quem mais seria? Eles são os únicos que ainda tentam arrancar alguma coisa daqui. Os vendedores já desistiram, por causa da estrada. Aquele Estranho do Governo nunca mais voltou.
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- Alô? – disse o sétimo- Schhhhhhhbzzzzzziiiiióóóóó...- Alôô!!!! – gritou o sétimo- Mais schhhhhhhbzzzzzziiiiióóóóó entremeado com zóinzóinzóins. – sons que pareciam inspirados no original da Guerra dos Mundos (1953) de H.G. Wells.
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- Droga, vou desligar! – desistiu o sétimo.
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- Ih, vem estranho por aí. Estranho maiúsculo (do Governo), pelo visto. – disse o oitavo.
- Como você sabe? – o sétimo parecia intrigado.
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- Da outra vez, também tentaram telefonar. Como não conseguiram, mandaram aquele Estranho do leite.
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- É, você tem razão. Vou deixar o Linoberto de sobreaviso.
Ninguém estranhou a chegada do Estranho. O mesmo da outra vez, que foi direto à casa do Linoberto. Maria o recebeu, enquanto mandava o cunhado procurá-lo na roça. Naquele dia, Linoberto beberia da “boa” em casa. Ele cumprimentou o Estranho, preocupado com a possibilidade de haver algum problema com o leite.

- Algum problema com o leite de caixinha? – perguntou Linoberto.
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- Não, não! Aquilo é página virada. O que me traz hoje aqui é a cultura.
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- Ué, você não trabalhava com saúde?
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- Também, porém minha ONG assumiu outro contrato com o Governo, na área da cultura. – respondeu-lhe o Estranho.
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- Aceita um gole da “boa”?
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- Não, melhor não. Mas fique à vontade. – A boca do Estranho contorceu-se, estranhamente.
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- Pode falar. – Linoberto era todo ouvidos.
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- Trago uma boa nova! O Governo está liberando uma verba substancial para a preservação da cultura. – o Estranho parecia entusiasmado.
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- Isto é muito bom! – afirmou Linoberto.
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- Basta que enquadremos seu município em uma das três classes de cultura. Para isso que estou aqui. Vocês se enquadrariam melhor como situacionistas, tucanos ou alienígenas?
- Bem, vivemos do lado de cá do cinamomo. – Linoberto ficou confuso.
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- Mas, aqui não há cultura!
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- Como não há? – Linoberto pareceu ainda mais confuso, lembrando-se da Festa do Terneiro Ensebado.
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Estranhamente, e já crescido, o terneiro mugiu.
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- Vocês aderiram ao Operário, ao Lorde da Sorbonne ou ao Gabeira?
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- Ah, nenhum deles.
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- Como? – o Estranho parecia perplexo.
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- Nós temos a festa da igreja e a do Terneiro Ensebado.
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- Bem, temos que enquadrá-los em um dos três grupos. – disse o Estranho.
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- Já sei, Besta lex, sed lex! – A lei é besta, mas é a lei! – Linoberto sacudia a cabeça.
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- Sim, não há como deixar de enquadrá-los em alguma das culturas previstas em lei, nem a possibilidade de não haver ninguém que se enquadre em alguma delas, por mais recursivo que esse raciocínio possa parecer.
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- Já sei, Besta lex,.. – disse Linoberto. O Estranho apenas acenou afirmativamente.
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- Há uma remota possibilidade, introduzida por um destaque de última hora. Posso tentar enquadrá-los nas minorias oprimidas, nas quais podem ser incluídas novas classes, desde que realmente e comprovadamente oprimidas.
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- Oprimidas por quem?
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- Isso não é relevante, basta serem oprimidos por alguém. – respondeu-lhe o Estranho.
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- Bem, então está resolvido! – afirmou Linoberto, abrindo um grande sorriso.O Estranho partiu, de cara meio amarrada. Maria veio sentar-se ao lado do marido, pousando sua mão sobre a dele.
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- E aí, Lino? O que foi, desta vez?
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- Eles queriam implantar aqui as culturas do outro lado do cinamomo.
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- Queriam mudar a quermesse, Lino?
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- Queriam, mas não conseguiram. Nos enquadrei numa nova espécie de minoria cultural.
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- Qual foi, Lino?
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- Bem, criamos uma minoria dos Oprimidos Pela União. Já crescido, o terneiro mugiu.
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terça-feira, 12 de agosto de 2008

3 - Besta lex, sed lex!



Besta lex, sed lex!
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Por Paulo Heuser

Foi na terça-feira. Já crescido, o terneiro mugia alegremente. Linoberto não percebeu a chegada do novo estranho, o terceiro em onze anos, pois estava ocupado com as lides campeiras, não necessariamente campesinas. Aquele não era um estranho qualquer. Era um estranho oficial, enviado pelo Governo. Um Estranho (maiúsculo), portanto. Esse não bebia, pois estava em missão oficial. Aguardava a chegada do Linoberto, sentado na sombra sob a parreira. O sol já nem incomodava mais, pois já se punha, prevendo a volta do Linoberto. Ele passara, como de hábito, pelo Bar, Armazém e Borracharia 12 Irmãos.

O Estranho estivera na prefeitura. O prefeito, sétimo irmão dos 12, ouviu todo o palavrório oficial, não entendeu nada, e mandou o Estranho falar com o Secretário de Administração e Outros Assuntos Extraordinários em Geral: Linoberto. A presença de alguém do governo era um assunto definitivamente extraordinário. Fazia 11 anos desde a última vez em que tentaram trazer alguém do Governo, por ocasião do nascimento do terneiro. Mandaram convite oficial para a festa. Não veio nem resposta. E agora surgia alguém, espontaneamente.

- Boa tarde, Seu Linoberto! Sou representante da ONG Vaca Feliz e fui enviado pelo órgão que trata da saúde da população. – disse o Estranho, apresentando um vistoso crachá.

Linoberto chegou a acreditar, por um femtossegundo, que finalmente conseguiriam verba para contratar um veterinário. Porém, a esperança desvaneceu-se logo, mesmo antes do homem continuar a falar. Lembrou-se de que não acreditava mais em Papai Noel. Seus pensamentos voltaram da Lapônia, quando o Estranho voltou a falar.

- O senhor deve ter acompanhado o noticiário sobre a fraude do leite, pois vejo que tem antena parabólica.

- Sim. – respondeu-lhe enquanto começava a pensar onde o Estranho queria chegar.

- Pois então, Seu Linoberto, descobrimos que vocês bebem do próprio leite que produzem aqui. Soubemos através do rapaz que leva o leite de vocês para a indústria.

- Claro, o leite fresco é outra coisa! Dá para bebê-lo ainda morno. Melhor que isso, só se for com pão com banha!

- O Governo está preocupado com a saúde de vocês, Seu Linoberto. Por isso estou aqui. Nossa ONG foi contatada para elaborar, aprovar e fazer cumprir a Lei de Responsabilidade Láctea. – o Estranho manteve tom de seriedade.

- Que lei é essa? – perguntou Linoberto, intrigado?

- É a lei que regula o consumo de leite. Para garantir a saúde da população, só é permitido o consumo de leite de caixinha.

Como que percebendo a gravidade da situação, o terneiro, já crescido, mugiu.

- Mas essa lei é muito besta! – Linoberto não se conteve.

- Besta lex, sed lex! – A lei é besta, mas é a lei! – disse o Estranho, deixando transparecer a desaprovação da conduta de Linoberto.

- Ora, o leite foi adulterado depois que saiu dos produtores. A maracutaia foi feita para lá do cinamomo. Aqui nós só tomamos leite da vaca que conhecemos, olho no olho.

- Olhares enganam! A vaca pode estar enganando vocês...

- É, e ela vai misturar soda cáustica e água oxigenada no leite? – Linoberto estava realmente indignado.

- Nunca se sabe, nunca se sabe. Pode haver um complô conta vocês... sussurrou o estranho, em tom de conspiração. E continuou:

- De qualquer forma, lei é lei. Terão de cumpri-la. O governo está disponibilizando uma verba para auxiliá-los na compra do leite de caixinha para os carentes. A única forma que o Governo encontrou para garantir a qualidade do leite foi essa. Todos deverão beber do leite padronizado e aprovado pela fiscalização na fábrica.

- Mas, aqui não há carentes, todo mundo é da classe média. O carente mais próximo está do outro lado do cinamomo.

Já crescido, o terneiro mugiu novamente.

- O senhor parece não entender, numa típica atitude de classe média. Se a lei diz que há carentes, é porque há carentes. Ponto. Se o município não cadastrar pelo menos um carente no programa, estarão descumprindo a lei. E há severas penalidades para os refratários. Besta lex, sed lex!

Linoberto precisava de tempo para pensar. Pediu a Maria que trouxesse uma garrafa da “boa”, para oferecerem ao Estranho.

- O que é isso? Estou em serviço, portanto não bebo! – o Estranho parecia indignado.

- Ora, é apenas um licorzinho digestivo, de losna e carqueja, coisa local, boa para as vísceras. Além do quê, o sol já se pôs, portanto o senhor já deve ter saído do serviço.

- Bem, pensando assim, que mal faz? – o Estranho pareceu aliviado.

O alívio desfez-se no primeiro gole. – a expressão mudou do alívio ao desespero. Enquanto o Estranho tentava se recompor, Linoberto pensou numa saída para aquele problema importado do lado de lá do cinamomo.

Alívio é o que transpareceu no rosto de Linoberto, quando o Estranho partiu, aparentemente satisfeito, apesar da boca torta, ao som do mugido do já crescido terneiro. Maria, que perdera o final da conversa, pois fora tratar os animais, perguntou ao marido sobre o estrebuchar do problema.

- E aí, Lino, como é que vamos nos livrar dessa? – ela parecia preocupada, apesar da expressão tranqüilizadora do marido.

- Foi meio complicado, mas logo vi que precisávamos resolver o problema de trás para diante. Primeiro, cadastrei o estranho (minúsculo), o do sindicato, como carente. Com aquele discurso contra as elites, colchão imperialista da classe media, etc, o Estranho acreditou na condição de carente do estranho. Atendida a lei, nesse aspecto, concordei em receber a verba para o leite de caixinha.

- Mas, teremos de tomar aquela droga? – Maria parecia perplexa.

- Não necessariamente. Com a verba para o leite de caixinha, compraremos o produto direto da fábrica. Aí abriremos as caixinhas e derramaremos tudo nos tarros onde levamos o leite para a fábrica, vendendo-lhes de volta, in natura, como se fosse leite das nossas vacas.

- Maria parecia meio confusa:

- Mas, quem abrirá as caixinhas?

- Contratei o estranho (minúsculo), o do sindicato. Ele andava rondando o sacristão, tentando convencê-lo a fundar o sindicato dos sacristãos. Foi bom para todo mundo. O sacristão está badalando sossegado, o padre ficou aliviado e o estranho conseguiu um emprego. Além disso, a lei será cumprida, o João Louco ganhará um bom dinheiro, o Estranho não voltará e o Governo terá cumprido sua missão. Sem falar da ONG, que receberá pelo serviço.

- O que faremos com o leite das vacas? – perguntou Maria.

- Ora, vamos bebê-lo!

Já crescido, o terneiro mugiu. Besta lex, sed lex!
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segunda-feira, 11 de agosto de 2008

2 - O sindicato

Foto: Wikipedia
O sindicato
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Por Paulo Heuser
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Linoberto Classe Média viu-se novamente sentado numa das desconfortáveis cadeiras do Bar, Armazém e Borracharia 12 Irmãos. Viu-se, pois havia um espelho na parede oposta. O copo com a dose da “boa” repousava sobre a mesa, entre um e outro gole, prudentemente espaçados. Repetiu-se o ritual da chegada do estranho, o mesmo do colchão imperialista. O Estranho pediu novamente o mesmo que Linoberto bebia, e assim por diante.

- E aí, já conseguiu mostrar a verdade para alguém?

- Quase, quase! Vocês são meio cabeças-duras, por aqui! – disse o Estranho, enquanto fitava o copo, desconfiado.

- É que nós cultivamos a cultura dos nossos antepassados. Não gostamos de novidades. O que está para lá do cinamomo, não nos interessa muito, além do comércio.

O Estranho fez uma careta estranha, talvez pela última frase do Linoberto, talvez pela amargura da “boa”. E continuou:

- Esse é o problema! Vocês impedem a revolução proletária! – O Estranho elevou o tom de voz. O terneiro, já crescido, mugiu em resposta.

- Hoje ouvi no noticiário o tal de Jabor dizendo que nós somos a classe média confusa e desinformada. – disse Linoberto.

- Não gosto daquele jornalista, pois escreve textos contra a única verdade. É um servo do imperialismo bushista-sarkozysta. Porém, quanto à classe média, tem razão. Dou a mão à palmatória.

- Ou seja, apanhamos de cima e de baixo. – disse Linoberto.

- Pudera, vocês não são pobres nem ricos. Compram ingressos para o canadense Cirque du Soleil (cúmulo do bushismo-sarkozysmo) em prestações. Os proletários não vão, ficam manobrando os carros das elites que vão, e pagam à vista. Vocês vão ao bistrô do Pierre e perguntam se aceitam vale-refeição. Suas mulheres se enchem de cremes contra rugas, enquanto as elites mandam trocar a cara no Pitangy. Vocês põem o lixo em sacos de supermercado. Proletário junta o lixo, enquanto a elite joga fora lagosta vincenda hoje, em sacos de lixo com propaganda de uísque escocês. Vocês põem película escura no vidro do carro, para não serem multados por falar ao celular. Pobre anda de Kadet com todos os vidros abertos, bombando som, enquanto as elites andam com os vidros fechados, falando pelos handsfree.

O terneiro, já crescido, aproveitou a deixa, para mugir. O Estranho começou a acreditar que aquilo fazia parte de uma espécie de claque para ridicularizá-lo.

- Pois aqui nós não temos dessas coisas, não. – disse Linoberto, enquanto saboreava mais um gole daquele elixir da amargura.

- Ah, não têm? E o que é aquele sujeito parado do outro lado do balcão? Proletário, não é! É um proprietário, com certeza! Portanto, membro da elite local, que explora a classe média como você, que impede a ascensão das minorias proletárias oprimidas, como aquele sujeito que você mantém trabalhando na sua terra, de sol a sol. – o estranho estava cada vez mais alterado.

O sexto dos 12 irmãos achou que o Estranho passara da conta, expulsando-o do bar, restaurante e borracharia. Chamá-lo de proprietário, tudo bem. Porém, chamá-lo de elite local? Ele nem entendia direito o que seria isso. Por via das dúvidas, melhor mandá-lo pastar, desde que não incomodasse o terneiro, já crescido, que mugiu.

Linoberto chegou em casa, com aquele ar de preocupação que Maria bem conhecia. Vira aquela expressão por duas vezes, nos últimos 11 anos. A primeira, quando o terneiro nasceu e o cunhado não pode levar o leite para lá do cinamomo. A segunda, no dia em que o Estranho chegou, lhes dizendo que fariam parte da classe média, o colchão de proteção das elites imperialistas degeneradas, bushistas-sarkozystas, com certeza.

- O que foi, Lino? O Estranho, novamente?

- É Maria, o Sexto o botou para fora do bar, armazém e borracharia. Aí o Estranho procurou teu pai para convencê-lo a fazer greve.

- Meu pai?

- Sim, ele disse que o teu pai é um proletário explorado pelas elites, através de nós, classe média, colchão imperialista decadente.

- Mas, meu pai trabalha na terra que nos deixou, conosco, como família!

- Sei, mas ele disse que isso não muda nada. Camponês sempre é explorado, parente ou não. Estava tentando convencê-lo a fundar um sindicato. Ele traria todo o material necessário, do outro lado do cinamomo.

- Meu pai não aceitou, não é?

- Não, Maria.

- Graças a Deus!
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- Bem, tive de lhe fazer algumas concessões. A partir de amanhã, quando assinaremos o acordo coletivo de trabalho, o velho poderá fumar escondido quantas vezes quiser e poderá ir oito vezes por dia até o 12 Irmãos.

O terneiro, já crescido, mugiu.
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domingo, 10 de agosto de 2008

1 - A classe média



Foto: Paulo Heuser
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A classe média
Por Paulo Heuser
Linoberto jogou-se na cadeira do Bar Armazém e Borracharia 12 Irmãos, como fazia em todos os finais de tarde. Esticou os braços e as pernas, no alongamento inconsciente. Foi a senha para um dos 12 irmãos trazer o martelo de losna e carqueja. Aquela bebida deixaria qualquer um com os beiços virados para dentro, feito velha desdentada que chupou limão azedo. Todo mundo, menos o Linoberto e seus colegas de bar. Ele bebeu daquela coisa pela primeira vez quando completou 18 anos. A avô o levou ao 12 Irmãos e pediu dois tragos, solenemente. Reinou o silêncio, enquanto todos esperavam para ver a cara do Linoberto, após o primeiro gole. A reação foi aquela esperada. Desesperou-se, tanto pela queimação quanto pela amargura da bebida. Todos riram, inclusive o avô, e a vida voltou ao normal. Quem inventou a bebida foi o primeiro irmão, dos doze, já falecido. A tradição se manteve. Os fregueses pedem da “boa”. Agora é o sétimo irmão, dos 12, o encarregado pela “boa”.

Distraído pelo amargor do primeiro gole, Linoberto não chegou a perceber a entrada do estranho. O primeiro, desde que a vaca do cunhado dera cria. Não que o estranho anterior viesse ver o terneiro. É que o cunhado do Linoberto não pôde levar o leite, pela primeira vez em 11 anos. Então mandaram o estranho buscá-lo. E o estranho entrou no 12 Irmãos, pediu o mesmo que Linoberto bebia, todo mundo fez silêncio, na expectativa da cara do..., etc, etc. Pois esse novo estranho também perguntou o que Linoberto bebia e pediu o mesmo. Novo silêncio, todos riram, etc. O homem fez a esperada cara de desespero, tão esperada pelos freqüentadores. Essa cara só era vista quando alguém na vila completava 18 anos, ou quando aparecia um novo estranho, o que, pelo visto, não ocorria com muita freqüência.

- Ahnmf... Coisinha fortinha essa! – o Estranho conseguiu falar, com a boca retorcida.

- É a especialidade da casa – disse Linoberto.

A conversa iniciou meio mole, com as trivialidades habituais. Linoberto ficou curioso. O que fazia ali aquele novo estranho, já que o seu cunhado não ficava doente desde o nascimento do terneiro.

- Vim mostrar-lhes a verdade. – disse o estranho, enquanto decidia se bebia outro gole da “boa”.

- Ah, já entendi! É um pregador. De qual igreja?

- Não tem nada a ver com igreja! Venho mostrar-lhes a dura realidade sociopolítica deste momento delicado da vida política nacional.

- Ah, agora entendi! Está vendendo plano de saúde... – Linoberto bebeu um longo gole, para espanto do estranho, que ainda não se recuperara do primeiro.

- Não! Venho lhes mostrar o caminho para a verdadeira revolução camponesa!

- Um vendedor de veneno, adubo, arado? - Linoberto estava cada vez mais curioso.

- Vim tirá-los das garras das elites dominantes. Notamos que vocês ignoram completamente o fato de estarem sendo explorados e escravizados pelas elites imperialistas retrógradas. – os olhos do estranho faiscavam.

- Olhe, moço. Nós podemos ser um pouco grossos, sem muito refinamento, completamente dispensável por aqui, mas não somos burros nem ignorantes. Temos antena parabólica, e vemos tudo que acontece depois do cinamomo.

- Antena parabólica? Isso é coisa da burguesia decadente! – a boca do estranho contorceu-se novamente, pois tomou outro gole da “boa”.

- Pode ser, mas a gente precisa ficar sabendo das coisas. Por isso mandamos os filhos à escola. Eu também estudei.

- Então, como podem ignorar a única verdade? Vocês passam fome, enquanto as elites se lambuzam naqueles festins decadentes dos capitalistas imperialistas, vassalos do Bush e do Sarkozy?

- Ninguém passa fome aqui. Nós comemos o que produzimos. Vocês que moram para lá do cinamomo é que passam fome, mesmo comendo. Vocês passam o dia tomando porcarias de refrigerantes, leite de vaca-química e cerveja de fábrica. Vocês comem verduras envenenadas e aqueles lanches, sabe-se lá do quê.

- Veja só o que você está bebendo. Lá há coisa semelhante?

O Estranho concordou com Linoberto, pelo menos nesse ponto. Qualquer um que ousasse fabricar esse negócio, para lá do cinamomo, seria preso - elite, burguês ou proletário.

- Sua peremptória negação da única realidade autêntica, proletária, progressista, campesina e... e... democrática - vá lá -, me leva a conclusão que você não passa de outro classe média, único culpado pela manutenção do estado em que se encontra o País. Fonte e sorvedouro de todos os males. A classe média é composta pelos sociopatas que mantêm o colchão de proteção das elites imperialistas contra as ações progressistas das minorias majoritárias que buscam a revolução autêntica, agente restaurador da conformidade das instituições sociopolíticas, tão brutalmente diferenciadas, antes mesmo do descobrimento do Brasil!

- Não sei o que querem restaurar. As coisas para lá do cinamomo sempre foram uma bagunça, antes mesmo de plantarem o cinamomo.

O Estranho ficou tão indignado, que bebeu o resto da “boa”, de um só gole. Saiu porta afora, iniciando um discurso defronte o 12 Irmãos. O terneiro, já crescido, mugiu. Linoberto foi para casa, preocupado. Relatou o ocorrido a Maria, sua mulher.

- Ficou muito preocupado, Lino?

- Fiquei, Maria. Fiquei...

- Por quê? O problema não está para lá do cinamomo?

- Hoje está. Mas estou com medo de que cortem o cinamomo, noite dessas.

- E aí as coisas mudarão, por aqui?

- Sim, Maria. Então seremos classe média.

- O que faremos, Lino?

- Sei não. Estive pensando, no caminho do 12 Irmãos até aqui. Hoje descobri que as coisas estão tão ruins, para lá do cinamomo, por nossa culpa. O estranho falou que somos o colchão imperialista acomodado. Somos culpados, desde sempre, pela desgraça dos outros, sei lá de que outros. Mas, não somos tão acomodados como ele pensa.

- Vamos trocar o colchão de molas por outro mais moderno, do tal viscoelástico!